Hitchcock: mestre do suspense mandou bem nos anos 30
Por Marcos Pierry
Do site Bahia na Rede
Infelizmente sem previsão de aportar na Bahia, uma mostra completa dos filmes de Alfred Hitchcock (1899-1980), realizada em junho e julho no eixo Rio-São Paulo, criou a possibilidade de um interessante laboratório em torno do universo do mestre do suspense. É sempre um regalo para o cinéfilo ver em tela grande, projetados em 35mm, os grandes filmes do diretor, algo a que não se tinha acesso faz tempo.
Saborear todos os 54 longas de Hitchcock, sem contar os curtas, filmes inacabados e séries de TV, mais que um banquete de entretenimento, é ter a chance da imersão na obra de um artista prolífico, original e de inquietude singular; mas que às custas de uma idolatria, justificada até, acabou por tornar-se refém de uma visão por demais esquemática, que na verdade representa apenas dois momentos, reconhecidamente brilhantes, de uma trajetória a confundir-se com a do próprio cinema.
Então, no geral, temos por um lado o Hitchcock europeu dos anos 20, aprendiz de Murnau, promessa-de-gênio que já produz excelências como O Inquilino ou Chantagem e Confissão; e por outro o consagrado gigante do cinema norte-americano dos anos 50 e 60, realizador dos impecáveis Um Corpo que Cai, Janela Indiscreta e Psicose, plataforma da política dos autores de Truffaut, Chabrol e companhia – e, claro, bom de bilheteria.
Fica faltando um olhar mais atento à filmografia que ele assina ao longo da década de 30. A pequena parcela que pude acompanhar da caudalosa retrospectiva leva a arriscar que nesse período já tínhamos um profissional de cinema completo, não somente hábil no manejo das técnicas empregadas à cine-narrativa, mas também pronto a incorporar a banda sonora a uma linguagem até há pouco silenciosa, detentor de um universo temático próprio e de soluções dramáticas que potencializam a representação cinematográfica.
São 15 os filmes realizados por Hitchcock no período assinalado, todos produzidos na Inglaterra natal, à exceção de Mary (31), a versão alemã de Assassinato, que foi produzido pela British International Pictures no ano anterior. As histórias não fogem ao tradicional menu do diretor, girando em torno de crimes, investigações e perseguições. O que chama a atenção é o Hitchcock amadurecido ao sobrepor plots em camadas no enredo, não descuidando das situações que servem de pano de fundo e com o já mencionado, e admirável, controle dos aspectos técnicos, desde a interpretação à montagem.
Tomemos Jovem e Inocente, de 1937. O filme trata do amor entre Erica e Robert, mas a trama de superfície envolve a morte de uma atriz e a procura de um casaco que é peça-chave para se desvendar o crime. Sim, ela foi assassinada – morte de causas naturais nos filmes de Hitchcock, ainda mais de uma diva, não dá. Robert surge como principal suspeito. O jovem aspirante a escritor encontra o corpo da vítima, de quem era amigo, na praia e vai parar na cadeia após o equivocado testemunho de pessoas que estavam no local do assassinato. Ele consegue fugir do tribunal durante um tumulto e, aos poucos, vai ganhando a confiança de Erica, a moça jovem por quem irá se apaixonar enquanto tenta provar sua inocência. Ela é filha do Sr. Burgoyne, o chefe de polícia, e isso cria uma interessante margem de ambigüidade para a personagem, interpretada por Nova Pilbeam, e para o conjunto do enredo. Sua convicção de que Robert é bom moço, despista Hitchcock, tanto pode decorrer da perícia adquirida ante a convivência com o ofício paterno ou do fato de estar caidinha pelo rapaz.
Por outro lado, é ela quem desde o início confia em Robert e se solidariza com ele. Erica o encontra, pela primeira vez, desmaiado na delegacia, portanto vulnerável. Ela vê o escritor como alguém frágil e incapaz para o delito. Podemos nos perguntar se o jovem e inocente do título aplica-se a ele ou a ela. Ou ao casal? Desde o primeiro momento há afinidade entre eles e promessa de ligação.
A resolução do crime torna-se passaporte para a união e rapidamente a narrativa ruma aos trilhos da comédia romântica, com toda a sorte de imprevistos e atropelos que só fazem aumentar a vontade de happy end do espectador. Aqui e ali escorre um clima meio Lubitsch, meio Capra. Mas os amores hitchcockianos, ficaria comprovado dali em diante, já trazia assinatura própria, com imbróglios de várias estirpes. Há, por exemplo, os amores vagabundos (Trama Macabra e Frenesi) e os amores fatais (Um Corpo que Cai e Janela Indiscreta). E aqueles em que mulheres (Marnie) ou homens (O Homem Errado) são, de algum modo, criaturas de alto risco para si e para o parceiro.
O personagem de Derrick de Marney em Jovem e Inocente é um pouco o homem errado que Henry Fonda interpreta no filme homônimo dos anos 50, afinal lá se repete uma situação qualquer de infeliz descaminho na vida do protagonista seguido de injusta acusação. Mas a amargura de Fonda passa longe do alto astral de Marney. Robert Cummings, em Sabotador (42), ou, ainda melhor, Robert Donat, em Os 39 Degraus (35), estão mais próximos. Ah, e a exemplo de Marney, os dois são criaturas de alto risco.
A sequência em que Erica descobre Robert a dormir, escondido, sob um monte de fenos numa casa abandonada é extremamente sensual e delicada. Ela traz um lanche para ele e a cena respira em clima de intimidade. A mínima aproximação entre os corpos é trabalhada como pequenos ritos de um pacto maior – o matrimônio ou simplesmente o envolvimento físico, digamos, mais direto? Talvez na fórmula, certeira, de Hitchcock caiba um pouco de cada um. E ainda um pequeno cachorro no papel de mascote sentimental.
Ainda no foco das relações amorosas, um tema que seria recorrente em outros filmes do cineasta. Ao lado da promessa de felicidade dos pombinhos pontua, não sem doses de humor, a abordagem do casamento como um problema, algo de que temos de nos ver livres, como ocorre no tribunal ou na movimentada passagem pela casa da tia de Erica. Mas movimentada mesmo é a fabulosa cena final, com o último nó do roteiro nos entregando o verdadeiro culpado em meio a uma fervilhante apresentação de músicos de jazz no hall de um hotel de luxo.
A câmera investe em tomadas de zoom até fechar em close opressor no rosto do réu. O ritmo das imagens acompanha o da tresloucada jam session. Quando a música desanda e vemos que o vilão será desmascarado, sentimos uma ponta de piedade porque sabemos que ele foi traído por uma piscadela compulsiva que o distingue, um tique nervoso nos olhos, ato involuntário, portanto uma fraqueza. Mas, lembre-se, é apenas Alfred Hitchcock a sangrar, com maestria, a moral cristã de sua audiência, dando-lhe em troca um desenlace de trama exemplar, onde até a letra da música de cena lança ventanas com mordaz ironia ao epitáfio do enredo. Poucos chegam a tanto, tão cedo.
Leia mais...